terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Churrasco No Py


Todo mundo tem um amigo, um primo longe, um contra cunhado, que possui uma estância de verdade e vive dizendo que vai armar um churrasco e convidar a parceria para um assado campeiro. Conhecer estância tudo bem, todavia a palavra churrasco desperta nosso atávico desejo de comer carne assado num braseiro.
Mas da conversa ao convite formal existe sempre um hiato preenchido por enrolação e corpo fora.
- Os bichos estão que é só pele e osso por causa da seca.
- Tô sem caseiro e a peonada está toda na colheita...
- A estrada tá um atoleiro só...
E por ai vai, mas um dia, meio alterado pela birita, tendo de retribuir algum convite ou aposta, o parceiro arma o tal de churrasco.
- Tá fechado, domingo que vem!
Primeira providência é descobrir a localização mais ou menos precisa, de onde se processarão "os trabalhos". Um mapa tosco é desenhado.
- E aí, precisa levar alguma coisa?
- Não! Tudo sob controle. Responde nosso anfitrião, num tom meio orgulhoso e meio ofendido.
No sábado anterior ao evento, sempre ameaça chuva, só pro "índio", que não come direito há dias, dormir cismado.
No domingo fatal, uma neblina prenuncia um dia lindo. Coloca-se uma roupa mais campeira, procura-se aquela bota que está com uma linda camada de mofo, apanha-se a melhor faca, e algum boné meio campeiro.
Sobe-se, até que enfim, no auto com um sorriso na região compreendida entre o coração e o estômago.
- Agora vai!
Enquanto se está no asfalto tudo corre bem, mas quando vai se chegando perto da primeira entrada marcada no mapa improvisado, a apreensão começa devagarinho.
- Marcou os quilômetros?
- Eu te pedi para cuidar a porteira depois dos eucaliptos...
- Amigo... sabe se é por aqui é que se vai pra estância Santa Izildinha (sempre nome de santa) do seu Chico?
Depois de temerárias bifurcações e muitos impropérios, o "anjo dos perdidos a caminho do churrasco" acorda e mostra o caminho. Parece de propósito, mas assim que estacionamos, uma matilha de monstros latindo e babando cercam o auto com intenções explícitas, juntamente com nosso (mui) amigo dizendo:
- Pode descer que os bichos são mansos.
Meio ressabiado vamos descendo e se acostumando uns com os outros. As crianças já sumiram apesar dos conselhos e ameaças. O anfitrião à vontade, de alpargatas de corda e bombacha arremangada, começa a fazer hora... mostra a casa, os potreiros, o pomar, explicando tudo, contando a história do lugar, enfim a chatice de sempre.
O ponto alto da visita é o galpão, de onde se percebe sinais de fumaça e cheiro de assado... oba! No dito cujo, aquele monte tralha peculiar, misturado com cheiro de pelego e de pesticida, tudo meio enjambrado pra dar lugar a uma mesa com uns bancos em volta.
Disfarçando a ansiedade e cuidando para a baba não escorrer, a gente se dirige para o local do crime, perto da porta. É um autêntico!!! Um belo capão em pedaços inteiros (paleta, quarto e costelas) assados à moda da campanha, fogo de lenha, espetos fincados no chão e salgado com salmoura.
Numa trempe alguma lingüiça enrolada ao lado da cambona com água pro chimarrão. Na volta alguns peões meio emburrados, desconfiados e sem nenhuma disposição para conversa. Por mais que se tente perguntar alguma coisa pertinente, sobre a idade e raça do bicho, o tipo de salmoura, a distância e o tempo do fogo... tudo que se obtém são grunhidos em algum insondável dialeto.
- Tudo bem, nossa meta principal não é propriamente conversar, é tomar umas e outras e fazer uma boquinha pensando nisso a gente começa a fazer conta... um capão e umas voltas de lingüiça... comigo vieram quatro, a turma do parceiro não é pequena, sem falar na peonada, Será que não vai faltar?
Bobagem o amigo sabe calcular, deve surgir um tira gosto, um pãozinho, uma maionese de batatas, um feijão mexido... relaxemos.
Falar em relaxar, tá na hora daquela cervejinha bem gelada, pra tirar o pó da garganta e como ninguém se mexe, larga-se a velha indireta: Viemos aqui para beber ou pra atirar pedra nas galinhas?
Uma caipirinha comunitária aparece, dou um bicadinha, tenho horror de destilado com açúcar.
Nesse instante um familiar do anfitrião se achega e cochicha algo em seu ouvido. Nosso amigo se afasta esbravejando e gesticulando retornando em seguida com um sorriso maroto.
- Que que houve, alguma zebra? Pergunto.
- Não foi nada, é que pedi pro inútil do meu filho trazer gelo para as bebidas... e ele não achou na cidade. Só me avisaram agora, mas já botei as loiras na geladeira... tudo sobre controle.
Como podemos observar, a coisa está se parando linda... pouca carne, cerveja quente e as crianças continuam sumidas!
Conversa vai, conversa vem, o pessoal - como que por encanto - começa a se chegar e a carne começa a ser servida na mesa, direto na tábua. Após um breve momento de vergonha e educação a turma avança como formiga em carcaça de gafanhoto, quando você se dá conta, mulheres e crianças estão no meio do entrevero, agarrando o que puder do jeito que der.
Você percebe que se for aguardar um suposto 2º tempo, vai ficar a ver navios. E se atraca também na carne dourada e macia do Ile de France. Deveria sobrar mais, mas a família da peonada também apareceu, e aquele pedacinho comido junto ao fogo direto no espeto ficou para uma próxima.
Buenas colocamos gelo na cerveja e jogamos mais uns 2 ou 3 baldes de conversa fora... quando bate aquele banzo que amolece os ossos e turva as idéias. Hora da séstia.
Na varanda não dá, pois o mulherio conversa falando 3 de cada vez. Uma cadeirinha de praia meio guenza e uma sombra de arvore para dar aquela roncadita caseira, é tudo que se quer...
Hora da volta... junta-se todo povo, despede-se elogiando tudo, prometendo voltar em seguida:
- Agora já conheço o caminho.

Gauchêz:
Estância: Campo, fazenda.
Índio: Pessoa, mesmo que vivente.
Enjambrado: Ajeitado de qualquer jeito.
Capão: Cordeiro, carneiro castrado próprio para o abate.
Trempe: Espécie de grelha com pés.
Cambona: Lata de óleo com cabo de arame torcido para esquentar água.
Entrevero: Confusão.
Ile de France: Raça de ovinos própria para carne.
Guenza: Frouxa, sem firmeza.